domingo, 4 de março de 2012

«Sleep», Eric Whitacre

Eric Whitacre é um compositor americano, nascido no Nevada, em 1970. Nos últimos anos, a sua criação musical tornou-se uma importante referência, no panorama da música coral. Muitas das suas obras fazem parte do standard repertoire dos grupos corais liceais e universitários nos EUA. A sua música exige, com frequência, grandes massas corais, em razão dos múltiplos divisi nas diferentes linhas vocais – essa aglomeração vertical cria uma sonoridade que se tornou marca idiomática. O seu trabalho composicional usa com frequência paralelismos, ostinatos, clusters e processos aleatórios, num contexto criativo em que se descobre um forte compromisso entre o lirismo das linhas melódicas e o uso colorístico da harmonia – por vezes próximo de algumas formas da «close harmony». A sua música vocal apresenta uma grande disponibilidade para a interpretação dos universos poéticos que a habitam – entre outros, Octavio Paz, James Joyce, e.e. cummings, Frederico Garcia Lorca. Se algo se destaca no seu processo criativo é, certamente, a forma como trabalha a relação entre o colorido harmónico, a dicção melódica e os sentidos do poema.

A sua relação com o ciberespaço é, talvez, a característica mais conhecida da sua atividade musical. As várias edições do seu projeto Virtual Choir ampliaram o número dos que cantam e ouvem a sua música, tornando-se um dos maiores sucessos da plataforma Youtube. Nestes projetos, qualquer cantor, em qualquer ponto do mundo, através do seu computador, pode gravar um dos naipes da obra selecionada, participando, assim, na construção virtual de um coro à escala planetária. O projeto concretizou-se já na realização internáutica de Lux Aurunque  e de Sleep. Prepara-se a terceira edição, com Water Night.

A obra que selecionamos neste mês de Março documenta bem os aspetos mais salientes do idioma composicional de Eric Whitacre: Sleep, para coro a cappella, com poesia de Charles Anthony Silvestri. A obra transporta uma história singular. No Verão de 1999, Julia Armstong, mezzo-soprano que vivia em Austin, contactou Eric Whitacre para lhe encomendar uma obra coral em memória de seus pais. Enviou ao compositor o seu poema favorito, Stopping by Woods on a Snowy Evening, de Robert Frost. Em Outubro de 2000, a obra coral de Whitacre foi estreada, com o título: Stopping by Woods. A obra conheceu um enorme sucesso, não só na sua estreia, mas também nas interpretações que de imediato se seguiram. Mas um problema jurídico viria a assombrar esta criação.

Eric Whitacre não tinha procurado a autorização necessária para o uso do poema. Os detentores dos direitos da poesia de Robert Frost conseguiram juridicamente a interdição do uso da poesia naquela criação musical. Após uma difícil batalha jurídica, Eric Whitacre preferiu pedir ao poeta e académico Charles Anthony Silvestri, seu colaborador noutros projetos, que criasse um novo poema para a música já escrita. Trabalho difícil, sobretudo porque Whitacre lhe pediu que mantivesse algumas palavras do poema original – aquelas que tinham uma forte relação com certas estruturas harmónicas criadas. O resultado é este verdadeiro hit da música coral contemporânea. Só a versão realizada no âmbito do projeto Virtual Choir, no Youtube, já se aproxima, a passos largos, com menos de onze meses, das 900000 visualizações (muitos destes internautas perderam a oportunidade de conhecer a poesia de Robert Frost).
Alfredo Teixeira

Eric Whitacre's Virtual Choir 2.0, «Sleep»


Eric Whitacre conducted the VocalEssence Chorus & Ensemble Singers, The St. Olaf Choir, and the 160-voice Minnesota High School Honors Choir 



Classic Brit Awards 2011 - Eric Whitacre Singers



sábado, 3 de março de 2012

Natal ao Sul

Visitar as diversas tradições musicais portuguesas, desenvolvidas no contexto das festas da natividade cristã, é descobrir um acontecimento vincadamente diferente daquele que vemos representado no espaço massmediático. Nas tradições portuguesas, encontramos o que poderíamos apelidar de «mística do sul». Os imaginários e as narrativas centram-se na figura do Menino Jesus, na Sagrada Família, nos Pastores e nos chamados Reis Magos. Esta figuração, materializada nos presépios, permite uma fácil identificação entre a história sagrada e a experiência social, e fornece o material simbólico para a celebração da vida, do futuro, da família e do mistério crente de um «Deus humanado» (tal como alguma literatura oral portuguesa recita).
A partir do século XVIII, começou a desenvolver-se a prática de representação da narrativa cristã do Natal em figurações diversas, para além da simples exibição do Menino Jesus no Altar.  É neste contexto que se divulgou a prática de montagem de presépios com figuras diversas, miniaturizando a própria sociedade setecentista – à economia anterior sucede a proliferação figurativa, que chegará até aos nossos dias, em que a Sagrada Família se veste das mais variadas culturas. Os «figuristas» da Provença alimentarão este circuito da miniaturização figurada dos mistérios cristãos, movimento que virá a conhecer outros centros produtivos, incluindo o território nacional. O mercado destas figuras religiosas tornou-se tão importante que, em 1803, se realizou em Marselha a feira dos «Santons», reunindo «figuristas» dos principais centros produtivos: Marselha, Nice e Aubagne. Curiosamente, a Revolução Francesa apadrinhou o presépio, na medida em que ele podia apontar para uma outra sociedade, não a dos privilégios, mas a dos «sans-culottes» – a sociedade que caminhava para o presépio era dos «populares» e não a dos antigos privilegiados. O presépio entregue à expressividade religiosa popular estava do lado da luta contra os privilégios eclesiásticos, conventuais e senhoriais.
O Algarve, mercê do seu isolamento, conservou a tradição medieval de armar o presépio com o Menino Jesus num altar. A atividade produtiva centrou-se, por isso, na imagem do Deus Menino. Santa Catarina de Fonte do Bispo tornou-se o maior centro de «pinta-santos». A figura algarvia aproxima-se das figuras similares, em cera, da Provença – o Menino está de pé, colocado em cima de uma pequeno pedestal, com a mão direita levantada (o algarvio gosta de lhe colocar uma ramalhete de flores azuis); a outra mão tem um mundo pintado de azul.

As crenças que se exprimem na sintaxe festiva do Natal expõem uma religiosidade de índole doméstica, atualizadora de uma linhagem crente cujo lugar de identificação é a família. O Natal carrega os significados da religião do «lar». A miniaturização da história santa e a humanização do divino são as operações simbólicas mais determinantes nesta transação entre o religioso universalista e administrado e o religioso doméstico transmitido. Num quadro de socialidades organizadas segundo o modo da tradição, a comunidade aldeã prolonga as solidariedades familiares primárias.

Raízes, talvez mais remotas, podem encontrar-se, também, nas regiões insulares. O Natal madeirense concentra a memória de um passado marcado pela luta pela domesticação do habitat natural, para se tornasse viável a sobrevivência social. Tais circunstâncias permitiram o desenvolvimento de laços de base e solidariedades interclassistas. É possível, hoje, descobrir uma inesperada proximidade entre as práticas tradicionais madeirenses e o que se descreve na criação de Gil Vicente, como o «Auto da Visitação» e o «Auto Pastoril Castelhano». Em ambos os testemunhos, os pastores são protagonistas da ação natalícia. Mesmo nada tendo, não querem visitar o Menino de mãos vazias. São eles os agentes da festa, reunidos em caminho até ao adro da igreja, com os seus instrumentos musicais – machetes, rajões, braguinhas, rebeca e gaita –, sem esquecer o assobio para o Menino Jesus. 

Para além destas formas de aculturação dos ritos católicos, persiste um dos traços mais identificadores das crenças e práticas natalícias: a miniaturização do nascimento do Deus infante. Multiplicam-se as «lapinhas» e as «escadinhas», presépios decorados com elementos vegetais característicos da Madeira, numa organização piramidal cujo cume é o Deus-criança, fonte das bênçãos procuradas. A partir do século XIX, desenvolveu-se uma prática paralela, o presépio de rochinha, que exibe mais ainda os traços da orologia e da flora da ilha.

Na música da natividade, recolhida etnograficamente ou recriada por vários compositores portugueses, podemos encontrar alguma coisa deste Natal ao Sul – miniatural, à escala do humano.

Alfredo Teixeira